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Ensaios de Conan Doyle sobre literatura refletem cansaço com seu detetive


Sherlock Holmes se transformou em uma criatura tão real que os estudiosos franceses recém-chegados a Londres queriam ver a sua (inexistente) casa em Baker Street, e muitos leitores enviavam cartas a seu criador para pedir autógrafos do detetive. Quando Arthur Conan Doyle anunciou que Holmes se aposentava para se dedicar à apicultura em South Downs, o escritor começou a receber missivas oferecendo ajuda para a tarefa. "Será que o senhor Holmes precisaria de uma caseira para cuidar de sua casa de campo?", uma mulher estava interessada. "Sei de alguém que adora a vida no campo, além de ser uma mulher discreta". E não era a única.
Não importavam as excentricidades com as quais o detetive se gastava no 221B de Baker Street com sua própria caseira e criada, a senhora Hudson, nem o perigo em que se colocava vez ou outra. Os candidatos a ajudá-lo em sua nova fase como apicultor eram reais, como reais também eram as petições de ajuda que recebia o doutor Conan Doyle para que investigasse mistérios não resolvidos.
O elegante sir britânico deixou suas recordações no livro "Meus livros, ensaios sobre literatura e escrita", uma raridade saborosa para aficionados e curiosos que a Páginas de Espumas acaba de lançar na Espanha com tradução de Jon Bilbao. 
É justo que a criatura adquira mais fama que o criador? Não é digno de orgulho que Frankenstein, Sherlock, Dorian Gray, o Quixote se convertam em ícones e parte do nosso imaginário sem que prestemos atenção ao autor? Conan Doyle se ressente um tanto que sua criatura o supere e narra o fato de forma divertida em seus ensaios, cheio de anedotas sobre casos reais que reclamavam para ele sobre a abordagem que Holmes teria tido se houvesse vivido de verdade.
O escritor se atreveu uma vez. E estes são os conselhos que deixou para quem quiser se atrever também: o primeiro é separar o que é certo das conjecturas. O segundo, fazer deduções. O terceiro, se perguntar por quê: por que o homem em questão se foi à meia-noite, por que mudou de roupa...perguntas e exercícios dedutivos que se chocam com a realidade: certa vez "em que aconteceu um roubo em uma pousada popular, o agente de polícia local prendeu o culpado quando eu não havia conseguido nada além de deduzir que se tratava de um canhoto calçado com botas de pregos", narra Conan Doyle, plenamente consciente de suas limitações.
Holmes travava suas batalhas sem muitas ferramentas além de sua enorme inteligência e seu poder dedutivo. Conan Doyle o criou a partir do detetive Dupin de Allan Poe, que atuava a base da racionalidade, mas o dotou com uma formação científica formidável para que fossem suas habilidades, e não a sua sorte ou o acaso, as capazes de resolver o caso. "Fui revolucionário nesse ponto e depois muitos me imitaram".
Mas os ensaios denotam cansaço, medo de se entediar e de entediar os outros. "Não quero ser ingrato com Holmes, a quem considero um grande amigo. Se alguma vez me cansei um pouco dele é porque é um personagem sem nuances", narra o escritor. "É uma máquina de calcular e qualquer coisa que eu adicione debilita essa impressão". O mesmo se passa com Watson. "Para que um personagem seja verossímil é necessário sacrificá-lo de toda a coerência".
O autor tentou se afastar de Sherlock para promover outras obras (ele relembra que escreveu "entre 20 e 30 obras de ficção, livros de história sobre duas guerras, vários títulos de ciência paranormal, três de viagens, um de literatura, várias obras de teatro, dois livros de criminologia, dois panfletos políticos, três coletâneas de poemas, um livro sobre a infância e uma autobiografia"), mas suas intenções iam de encontro com a demanda de mais Holmes. Certa vez preparou uma obra teatral que fracassou e teve que improvisar uma adaptação de Sherlock Holmes para não perder o dinheiro. Outra vez montou uma consulta oftalmológica e se aborrecia tanto entre um paciente e outro que dedicou o tempo a escrever relatos que publicava nas revistas...sobre Sherlock Holmes. E ele agradece ao êxito, mas reclama que seus trabalhos "mais sérios" não tenham tido maior reconhecimento.




Arthur Conan Doyle.ampliar foto
Arthur Conan Doyle. KEYSTONE/GETTY


Quis se limitar a seis relatos em As Aventuras de Sherlock Holmes e aceitou outros seis, publicados em Memórias de Sherlock Holmes. Ausentava ou matava Holmes acreditando que estava esgotado, mas no final acabou produzindo 56 contos e 4 romances durante quatro décadas que ofuscaram absolutamente o resto de sua produção. Acreditava que "as boas obras literárias são as que fazem com que o leitor seja alguém melhor, mas ninguém pode se tornar melhor por ler Sherlock Holmes", escreveu de forma honesta. Frente a todos aqueles que defendem a conversão da literatura criminal em um gênero de letras maiúsculas, Conan Doyle lhes joga um balde de água fria: "Não era minha intenção fazer uma obra maior e nenhuma história de detetives jamais poderá o ser; tudo o que se relaciona com temas criminais não é mais que uma forma barata de despertar o interesse do leitor". E claro que ele não criou litertaura com letra maiúscula, mas sim um ícone da cultura pop britânica que segue originando filmes, visitas a Baker Street - agora existe um museu em seu falso endereço - e novas edições. Porque ainda que não tivesse sido sua intenção, o mundo foi melhor com Sherlock Holmes.
Fonte: El País
Tradução: Sherlock Brasil

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